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O Homem que Queria Sorrir

Você acorda. A claridade que passava em camadas finas pelas frestas das cortinas lhe incomodam, não se dá nem mesmo ao trabalho de abri-las. Seu corpo se afunda ainda mais na cama. Incontáveis minutos se passam e você ainda parecia sentir-se pesado demais para sair. O despertador ainda insiste em tocar. Hora de tentar ganhar a vida mais uma vez.

A muito contragosto, você se levanta. Seus olhos ainda parecem querer ceder ao sono apesar do banho frio, e não se lembra de quantas tentativas foram necessárias para conseguir abotoar a camisa nos lugares certos. O nó na gravata lhe sufoca, ainda que não esteja tão apertado. Seus sapatos lhe proporcionam uma irritabilidade tão grande quanto ao do canto dos passarinhos do lado de fora. Um longo suspiro. A cabeça pesa. Mais um dia, mais uma tentativa, mais um “e se”.

O café está fino, o gosto amargo mesmo com a quantidade suficiente de açúcar. O pão é comido pela metade. Seu estômago continua embrulhado, acha que pode vomitar a qualquer momento. Antes de sair de casa, você se olha no espelho. Olheiras fundas demais, mas não parece interessado em fazer alguma coisa a respeito. Dá para dizer que tem trabalhado em demasiadas noites em claro. No mais, aparenta estar em bom estado, isso lhe parece bom. Outro suspiro. O tempo não há de lhe esperar.

Você caminha a passos lentos e arrastados, sem estar muito atento ao que ocorre a sua volta. A luz do sol ainda lhe incomoda, assim como o barulho das buzinas insistentes no trânsito. Ao seu lado do banco do ponto de ônibus, uma criança chora. Isso lhe irrita muito mais. Mais um suspiro. Mais incontáveis minutos. A contagem para o fim do dia se inicia outra vez.

O ônibus ainda não está lotado e acaba conseguindo aquele lugar no banco dos fundos. Recostado na janela, sua mente vaga novamente. O mundo afora não lhe aparenta ser tão inerte e cinza naquele ângulo. Você ainda parecia resistir a render-se ao sono. Um dia seu mundo voltaria aos eixos?

Você para de frente ao prédio onde trabalha e estampa no rosto o seu melhor sorriso. Hora de participar daquela velha brincadeira de ser feliz. De novo.

Você nem se lembra mais com o que está trabalhando. As horas se arrastam em uma jornada interminável e seus arredores não lhe parecem muito interessantes. A única coisa da qual se lembra é acenar para as pessoas como se estivesse de fato contente em vê-las e da enésima tentativa de resgatar quando foi a última vez que ficou eufórico com algo.

Você não consegue comer toda a comida durante a pausa para o almoço. Ela não lhe parece tão apetitosa. O nó na sua garganta e no seu estômago não permite com que ela lhe desça muito bem. Você olha ao redor e se depara com um mar inteiro de conversas animadas e trocas de sorrisos genuínos, ou ao menos parece ser assim. Essas pessoas deveriam estar felizes? Sua irritação de horas antes deve ter voltado, ou talvez você só não queira sentir mais nada.

Suas horas de expediente restantes passam e continua trabalhando como se motivo algum houvesse. Mais uma vez você não sabe a que lugar sua mente vaga. As conversas breves e espaçadas com seus colegas de trabalho assemelham-se mais com meros borrões. Seu sorriso só lhe era bem-vindo quando solicitado, talvez entre uma piada não muito engraçada e momentos que já não soavam tão nostálgicos assim. Sua memória mais nítida talvez seja de ter dispensado novamente aquela saída entre amigos depois do horário útil.

Seus dois únicos esforços ao botar os dois pés para dentro de casa são o de afrouxar o nó da gravata e o de se jogar no sofá. Você não dá muita importância para as latas de cerveja amassadas e espalhadas pelo chão, ou para as marmitas de comida mofada dispostas na mesinha de centro, muito menos para os pacotes de salgadinho abertos e nenhum completamente vazio. Acha melhor não dar uma olhada na geladeira e ver o que ainda tem de bom dentro.

É preciso grande empenho para não fitar os retratos. Ainda não entende exatamente por que continua com eles pendurados naquela parede, talvez seja para servir de lembrança. Lembrar de que não poderia viver em paz.

Batalha perdida. Seu olhar passa de foto em foto até pairar sobre o da menininha sorridente que lhe abraçava como se fosse o ser mais precioso de toda sua vida. Você sente seus olhos marejarem. Não, as mesmas memórias vindo em mente de novo não. Qualquer sentimento e momento passado lhe são bem-vindos, menos aqueles.

O aperto no peito lhe recebe de bom grado. Seu corpo pesa mais do que nunca no sofá. Seu velho amigo veio lhe sussurrar aquelas velhas palavras novamente. Você poderia ter impedido. Poderia ter sido melhor para ela, poderia ter sido melhor para sua esposa, poderia não ter se convencido de que teria assumido o controle de tudo, até mesmo da vida delas. Nenhuma delas teria lhe deixado para trás. A garotinha que cresceu de repente não teria levado o fim que levou. Sua esposa não teria lhe culpado até ir embora.

Você retém um grito. O ar lhe falta. Chora copiosamente até soluçar. Você não é bom, as pessoas que tanto amou um dia ainda estariam aqui se fosse. Não merece ser feliz. Não merece sorrir genuinamente outra vez. Não merece uma segunda chance. Segundas chances não existem para quem leva as pessoas à ruína. É o que a pequena voz familiar lhe diz.

Outro grito contido. Você já não consegue mais parar de tremer. Seu corpo continua pesando uma tonelada. Não faria diferença afundar ali mesmo. Sua alma grita. Grita em arrependimento e em clamor a todos aqueles que se foram. Você sussurra um pedido de desculpas, mas não há ninguém ali para lhe ouvir. Sua voz. Você não consegue encontrar sua voz. Seu pesar e sentir muito não diminui o aperto insistente no peito, não lhe deixa nem um pouco mais leve. Porque você é um homem que quer sorrir mesmo sabendo que não merece. Porque acredita que deve afundar-se em sua própria miséria pelo restante de seus dias.

Seu estômago está embrulhado. O nó em sua garganta não se desfez. Você vai em direção ao seu quarto a mais passos lentos e arrastados. Não se dá ao trabalho de tomar banho antes de se debruçar na cama. O ar ainda lhe falta mesmo sem a gravata. Seus olhos permanecem cheios d’água. E novamente você tenta ignorar o cheiro não identificado da sala entranhando pelo quarto.

Você só consegue dormir depois de revirar-se muito pela cama. As horas correm sem nenhum tipo de pressa. O suor escorre pela sua testa. Seus sonhos não parecem lhe tranquilizar.

E então o despertador toca. Você acorda e o mesmo dia acontece outra vez.

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